Após ter lido atentamente os documentos disponíveis, propomos agora paresentar com mais precisão as fases de desenvolvimento de Saint-Martin. Sua alma buscava se manifestar na vida exterior de uma forma correspondente às suas aspirações e aos seus desejos, que ainda eram vagos. Seu encontro com de Grainville e com de Balzac produziu uma mudança para toda a sua vida. Ele pareceu receber uma diretriz patente quanto à orientação futura de sua vida. Desde sua primeira juventude ele esteve sempre pronto para uma submissão ávida ao imperativo interior e jamais sua natureza exterior se opôs a isso. Isso parece ter sido como uma previsão de sua própria missão, que exigia a renúncia e o holocausto de sua natureza inferior, o contrário representando a oposição ao serviço da verdade, da modéstia e da humildade.
Martinès de Pasqually foi o primeiro instrutor de Saint-Martin. A ideia mestra de sua doutrina da reintegração do homem, ou seja, o retorno ao estado primeiro que era o seu antes de mergulhar no mundo material dos fenômenos, enleva Saint-Martin. Subjugado pela grandeza e pela beleza da verdade, ele se devota voluntariamente a todos os estudos necessários e a todas as práticas requeridas. Na escola de Martinès, em Lyon, a senda do Iluminismo conduzia à prática da « magia cerimonial », sendo o objetivo último a união com Deus. Martinès de Pasqually funda em Lyon uma assembleia com o nome de Élus-Cohen. Era uma época em que as questões esotéricas e aquilo a que se chama magia despertavam um grande interesse.
Sob a direção de Willermoz, que Saint-Martin havia conhecido, a Loja de Lyon se ampliava. A doutrina mágica e teúrgica de Martinès de Pasqually parecia das mais apropriedas a Willermoz. Difundir o Iluminismo na França era sua missão. Ele apreciava o trabalho em grupo. Objetivos comuns atraíram um ao outro esses dois alunos eminentes de Martinès, mas não tardaram a aparecer suas diferenças de caráter e de organização psíquica. Eles se separaram por questões relativas ao método que conduz a esse objetivo último.
Willermoz escolhia a via mental que exigia um desenvolvimento intelectual e que se exprimia na magia cerimonial, ao passo que Saint-Martin preferia a via cardíaca que se exprimia na teurgia pura. Ele considerava a magia indesejável, pois ela magnificava o poder de vontade individual que muitas vezes despertava o orgulho e que provocava, se não a queda, ao menos tropeços na via do renascimento. Inversamente, a teurgia, tal como a concebia Saint-Martin, desenvolvia uma humildade cada vez mais profunda por causa do restabelecimento do elo com Deus através da prece e da súplica. A humildade e a simplicidade, dois traços dominantes do caráter de Saint-Martin, faziam com que ele considerasse detestáveis a pompa e o aspecto cheio de esplendor prezados pelas Lojas. Ele estava em busca de uma expressão simples e direta das experiências da alma. Ele queria acima de tudo ver e demonstrar a essência preciosa deixada pela comunhão com os Poderes Superiores.
É nessa época que ele escreve seu primeiro livro: Dos erros e da verdade. Sempre tentando em tudo o que empreendia estar o mais próximo possível da verdade, assinou o livro com o nome de « Filósofo Desconhecido ». Essa obra inspirada desencadeou muitas discussões por conta de seu conteúdo insólito, sobretudo no círculo dos Illuminati. A tese do livro é que, pelo conhecimento de sua própria natureza, o homem pode alcançar o conhecimento de seu Criador, de toda a Criação e também das leis fundamentais do Universo cujos reflexos encontramos na lei feita pelo homem. É sob essa luz que se mostra a importância do livre arbítrio – essa aptidão fundamental do homem que, quando mal utilizada, acarreta sua queda e que, quando utilizada para o bem, o conduz à libertação e à ressurreição no espírito.
A vida exterior do Filósofo Desconhecido foi uma trama viva na qual sua vida interior bordava a tela, e para que essa vida fosse perfeita ele sabia como utilizar o menor dos acontecimentos, fosse ele feliz ou infeliz, nele sempre encontrando um ensinamento oculto. Saint-Martin descobria o grande valor do silêncio, condição absolutamente necessária para ganrantir a inspiração. Não era o silêncio um manto que protegia o mundo invisível da profanação? Entretanto, a escola do silêncio era difícil para um místico com o seu temperamento – ele, cuja alma desejava acima de tudo projetar a luz nas trevas da ignorância. Um dogma seco só poderia servir de obstáculo para a torrente criativa de sua vida interior – o silêncio não podia encarcerar sua atividade, mas lhe serviu para tomar a medida do ouro espiritual antes de entregá-lo ao seu discípulo.
Vem em seguida o livro de Saint-Martin O Quadro Natural das relações que existem entre Deus, o homem e a natureza. O homem foi de tal forma privado de suas aptidões e meios superiores em razão de seu mergulho na matéria que perdeu a consciência de sua natureza primeira onde estava antes dessa queda – natureza a qual era um reflexo da imagem de Deus. Assim, o homem ficou sujeito às leis que reinam no mundo físico. Com essa queda, o homem se extraviou do âmbito de seus próprios direitos e deixou de ser um elo entre Deus e a natureza. O homem possui aptidões psíquicas que podem subordinar os sentidos e as forças da natureza se ele se tornar independente e se liberar da empresa dos sentidos, para não falarmos da possibilidade que ele tem de fazê-las servir para a expansão do campo de seu conhecimento. O homem, e esta é uma regra quanto a ele, possui a faculdade de perceber a lei, a unidade, a ordem, a sabedoria, a justiça e o poder num grau superior. Esforçando-se para tanto por sua própria vontade, ele pode regressar à fonte do conhecimento que ainda existe nele; ele pode restaurar a unidade que foi o começo de tudo. O renascimento do homem foi tornado possível pelo sacrifício do Salvador e agora qualquer homem pode tomar parte na obra de restauração da antiga ordem e voltar às leis antigas que estão a serviço de todas as criaturas.
Saint-Martin era um adversário ferrenho da filosofia ateia e materialista que grassava naquela altura por toda a Europa. Naquele período, podemos constatar a amplitude da riqueza individual do Filósofo Desconhecido. Ele reuniu o conhecimento adquirido no mundo invisível com o da inteligência e ambos reunidos participam na plenitude de seus ensinamentos, os quais abordam todos os problemas que tratam das condições de desenvolvimento dos indivíduos, das sociedades e das nações. Essa é a época de sua atividade incansável e dos seus diversos contatos em seu próprio país e no exterior. Ele encontrava tempo para uma vasta correspondência e partilhava com os outros o fruto de seus conhecimentos. A influência de Saint-Martin e a difusão de seus ensinamentos na França, na Inglaterra e na Rússia datam de 1785. É o que demonstram suas cartas na obra de Longinov Novikoff e os Martinistas Russos.
Quando vai a Londres, encontra o místico William Law e o famoso clarividente Belz. Esse encontro se revelará muito importante. Torna-se amigo de Zinovieff e do príncipe Galitzine, que introduz o Martinismo na Rússia. Se o Martinismo foi criticado e perseguido, isto foi resultado da ignorância quanto à essência e os objetivos desta doutrina e também o produto de falhas humanas de martinistas ocasionais, naturezas falhas, imaturas e inconstantes para com os altos padrões morais exigidos pelos ensinamentos de Saint-Martin.
A difusão dos ensinamentos de Saint-Martin foi acompanhada de um sucesso social pessoal, mas a calorosa simpatia, as amizades sinceras despertadas no contato com sua personalidade cativante não obstaculizavam sua vida interior. Fazendo uma aplicação pessoal de seus ensinamentos, seu ser estava tão purificado que sua paz interior não poderia ser posta em perigo. Sua alma sedenta de mais luz a recebia numa proporção superior e a assimilava em benefício da posteridade. Atingiu seu apogeu quando conheceu as obras de Jacob Bœhme. Lá encontrou a solução categórica para todos os problemas no nível mais alto da escala que conduz à união com Deus Pai.
Jacob Bœhme não era um instrutor no sentido em que foi Martinès de Pasqually para o jovem Saint-Martin, porém sua importância foi maior, pois Saint-Martin agora estava bem preparado para receber uma revelação nova por intermédio de Jacob Bœhme. Uma nova luz invadia sua alma, era assimilada e apressava o processo interior de transformação. Encontramos um eco de suas experiências nas cartas enviadas a seu amigo próximo, Kirchberger, barão de Liebistorf. Jacob Bœhme era um místico pela graça de Deus. A revelação, a descida a luz, o êxtase da alma – muitas expressões podem descrever o choque da alma subitamente desperta.
Vemos diferentes modos de Iluminação quando o « vaso eleito » está preparado para receber. Na obra de Saint-Martin O Homem de Desejo, vemos o novo gérmen produzido pela assimilação da doutrina de Bœhme. Essa obra lembra um dos salmos que exprime o ardor da alma por Deus e que lamenta a queda do homem, seus erros e seus pecados, sua cegueira e sua ingratidão. Salientando a origem divina do homem, Saint-Martin viu a possibilidade de seu regresso a seu estado primeiro, quando estava de acordo com a lei de Deus. Porém, é apenas abandonando a via do pecado e seguindo os ensinamentos do Cristo redentor filho de Deus, que desceu das alturas de Seu trono celeste por amor a toda a humanidade, que o homem é digno apenas de adorar e que através do amor e imitando-o pode alcançar a salvação.
Quem sairá vencedor desse combate? Aquele que não se preocupa em ser reconhecido pelos homens ou com aquilo que pensam dele, mas que faz todos os esforços para não ser apagado da memória de Deus. Se não fosse a vinda de um homem que pôde dizer: « Não sou desse mundo », qual teria sido o destino da posteridade humana? A humanidade teria sucumbido nas trevas e teria se separado eternamente do reino do Pai. Entretanto, se muitas pessoas se desgarram do amor, pode ele renunciar à humanidade?
Em sua obra posterior Ecce Homo, Saint-Martin previne quanto ao perigo existente em buscar a excitação das emoções e procurar as experiências mágicas de baixo nível, tais como a divinação, o espiritismo e os fenômenos vários que são apenas a expressão de estados psico-físicos anormais do homem. Este caminho leva a humanidade para as trevas desconhecidas e perigosas e leva a uma queda ainda maior, ao passo que a salvação só pode ser obtida por um renascimento consciente.
Em seu livro O Novo Homem, publicado no mesmo ano, o autor trata do pensamento como um órgão de renascimento que permite que se penetre no mais profundo do ser humano e se descubra a verdade eterna de seu ser. A alma do homem é um pensamento de Deus; o dever do homem é remover o véu que recobre o texto sagrado e então fazer o seu melhor para amplificá-lo e manifestá-lo ao longo de toda a sua vida. Em sua obra Do espírito das coisas, Saint-Martin declara que o homem, criado à imagem e à semelhança de Deus, pode penetrar o seio do Ser que está oculto em toda a criação e que, em virtude de sua visão interior clara, é capaz de ver e reconhecer as verdades de Deus depositadas na Natureza. A luz interior é um refletor que ilumina todas as formas. Da intensidade da luz depende o grau de iluminação e discernimento de que necessita o homem renascido em espírito lendo o Livro aberto da Vida.
O livro de Saint-Martin O Ministério do Homem-Espírito completa todas as indicações precedentes apresentando um objetivo não-díspar – o da ascensão de uma alta montanha. O homem a escala, levado por uma necessidade interior e com o pressentimento da vitória que traz a liberdade após as tribulações e sofrimentos. Uma liberdade que, nesse caso, é sinônimo das maiores bênçãos que podem ser alcançadas na Terra. Existe um raio radical e único para descobrir e espalhar a moralidade e a bondade, e esse raio é o pleno desenvolvimento de nossa essência interior imanente. O mais alto sacrifício a ser feito para salvar a humanidade já foi oferecido; compete agora ao homem oferecer, com o sacrifício voluntário, sua própria natureza inferior – crucificá-la e, desta forma, libertá-la dos entraves opressores da natureza grosseira. É o retorno do filho pródigo para o Pai perpetuamente repleto de caridade e perdão. Isto é, alcançar a unidade perfeita com Ele: « Meu Pai e eu somos um. »
Cada alma possui seu próprio espelho que reflete a Verdade única. Cada alma possui um prisma e um arco-íris que lhes dá suas cores, e esta é a razão pela qual as obras de Saint-Martin não são semelhantes às de Bœhme. As missões desses dois homens na vida também eram diferentes, ainda que brotando da mesma fonte – da mesma necessidade de servir a humanidade abrindo para ela um novo caminho de progresso. Saint-Martin prezava altamente as obras de Bœhme, ainda que as considerasse bastante caóticas e confusas. Ele quis oferecê-las aos seus compatriotas e traduziu os livros mais importantes de Bœhme : A Aurora Nascente, os Três Princípios da Essência Divina e Quarenta Questões sobre a Alma. Após a morte do Filósofo Desconhecido, alguns breves escritos de sua autoria foram publicados, dentre os quais citaremos Pensamentos Escolhidos, numerosos fragmentos éticos e filosóficos, poesia – inclusive O Cemitério de Amboise e Estâncias sobre a Origem e o Destino do Homem, além de meditações e preces.
Saint-Martin se interessava pela ciências dos números. É fato que sua obra Dos Números permaneceu inacabada, embora contenha muitas indicações importantes que não poderiam ser encontradas alhures; ele analisou os números do ponto de vista metafísico e místico. Nos números, ele encontrou uma confirmação da queda e do renascimento do homem. O número não é considerado no sentido de um signo morto, mas sim como a expressão do Verbo Criador. Cada número indica uma determinada ideia e age em vários planos. Tudo é a expressão da unidade vertendo do seio da Divindade. O amor e o sacrifício estiveram na base do ato da criação. O pecado original, a queda do homem, sua corrupção e sua imersão na matéria devem ser redimidos pelo sacrifício e pelo amor ao Criador; só ele pode cumprir o retorno à Unidade.